O cimento ecológico
Pesquisadores da Unesp e da Espanha desenvolvem argamassa feita a partir das cinzas do bagaço de cana-de-açúcar. Material, tem resistência similar à do convencional, mas sua fabricação gera menos emissões de dióxido de carbono
Reportagem de Fábio de Castro, com fotos da Agência Ophelia.
A PRODUÇÃO DE CANA-DE-AÇÚCAR na safra 2014/2015 deverá ser de 672 milhões de toneladas, de acordo com previsão divulgada em maio pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Com isso, estima-se que as mais de 300 unidades de produção sucroalcooleira em atividade no país deverão gerar cerca de 150 milhões de toneladas de bagaço. Aproveitar bem a imensa quantidade de bagaço de cana-de-açúcar que é gerada pelo processo de produção de açúcar e etanol é um desafio para a indústria sucroalcooleira.
Uma das estratégias consiste em queimar o bagaço, a fim de gerar energia e empregá-la no funcionamento das próprias usinas, possibilitando, assim, sua autossuficiência. Este recurso, no entanto, resulta na produção de toneladas de cinzas, que são depois integralmente descartadas. Mas um novo processo, desenvolvido por pesquisadores da Unesp em Ilha Solteira e da Universidade Politécnica de Valência (UPV), acena com a promessa de transformar futuramente estes resíduos em um recurso interessante para a indústria da construção civil.
A pesquisa é coordenada por Jorge Akasaki, do Departamento de Engenharia Civil da Faculdade de Engenharia de Ilha Solteira (Feis). Mauro Tashima, professor da Feis que também trabalha no projeto, ressalta que, além de proporcionar uma solução para a destinação das cinzas, o cimento ativado alcalinamente – nome dado ao novo material – possui características similares às do cimento convencional. “Mas tem menor impacto ambiental, pois sua fabricação emite quantidades muito menores de CO2 na atmosfera”, diz.
Grupos de pesquisa de todo o mundo trabalham com materiais alternativos que são misturados ao cimento Portland, o nome pelo qual é conhecido o produto “padrão”. Mas o grupo de pesquisas Materiais Alternativos de Construção (MAC), da Feis, que conduz o estudo, deu um passo à frente ao gerar um material novo exclusivamente a partir de resíduos. “O método emprega apenas cinza de bagaço de cana-de-açúcar, escórias de altos–fornos industriais e uma solução alcalina”, explicou Tashima. “Não há qualquer adição de cimento.”
A cooperação com a UPV teve início em 2002, quando Jorge Akasaki realizou um pós-doutorado na instituição espanhola.
A temporada de Akasaki na Espanha abriu caminho para a internacionalização do MAC, que envolveu o intercâmbio de alunos de graduação, pós-graduação e docentes pós-doutorandos da Unesp. Em 2013, José Luiz Melges, também integrande do MAC e professor da Feis, retornou ao Brasil, após realizar na UPV um pós-doutoramento que analisou a reutilização da cinza do bagaço de cana-de-açúcar na produção de aglomerantes ativados alcalinamente. Em junho deste ano estava prevista a chegada de três professores da UPV a Ilha Solteira. “Essa mobilidade internacional melhorou muito a qualidade das pesquisas e das publicações do nosso grupo”, avalia Akasaki.
Por conta dessa cooperação, Tashima foi à Espanha em 2006, onde cursou o doutorado sob a orientação de Jordi Payá e Maria Victoria Borrachero. Nesse período, foram dados os primeiros passos para a produção de um material alternativo cujo aglomerante não tivesse base no cimento convencional. O trabalho resultou no desenvolvimento de uma metodologia que pode ser aplicada a diversos materiais.
Coube ao mestrando Vinícius Castaldelli, que foi enviado à Espanha em 2012, descrever em sua dissertação a produção de aglomerantes ativados alcalinamente à base de cinza de bagaço de cana. O mestrado foi orientado por Akasaki e Tashima, e os resultados foram publicados em 2013 na revista Materials.
O cimento Portland é produzido usando-se duas matérias-primas naturais: calcário e argila. Os dois são moídos e calcinados a mais de 1.400 graus Celsius, formando o chamado “clínquer”. Esse material é então moído e misturado com gesso para se tornar o pó de cimento.
O cimento alternativo desenvolvido pelos pesquisadores, por outro lado, não necessita desses insumos. “Além da cinza de bagaço e das sobras de alto-forno, utilizamos apenas um ativador alcalino composto por hidróxido de sódio, silicato de sódio e água”, diz Tashima.
No início do processo, a cinza passa por um processo de moagem, resultando em um pó escuro e fino. Esse material é misturado com a escória e, depois de se tornar homogênea, a mistura é levada a uma máquina argamassadeira, que parece uma grande batedeira de cozinha. Adiciona-se uma solução que tem efeito ativador. Após cerca de 10 minutos na argamassadeira, a massa ganha uma consistência homogênea, e à continuação é adicionada areia. Isto conclui a etapa de preparação do material.
A mistura é a seguir despejada em moldes de formato prismático ou de cilindro. Esses moldes ficam sobre uma mesa que vibra. A vibração ajuda a expulsar o ar da mistura, tornando-a mais compacta. Nesta etapa são confeccionados os chamados “corpos-de-prova”, que é o nome dos objetos sólidos que serão submetidos a testes para definir as propriedades do material.
Em seguida, o molde é levado a uma câmara úmida, com ambiente totalmente controlado. O material fica ali por um tempo predeterminado. Depois de endurecer completamente, o corpo-de-prova vai para uma prateleira, onde fica armazenado até o dia dos testes, também chamados de ensaios.
O corpo-de-prova passa por diversos ensaios. No mais usual, ele é submetido a uma carga axial, que avalia sua resistência à compressão simples. Outros ensaios mais específicos investigam se o material é mais ou menos poroso, ou se pode suportar um ambiente sujeito a ataques químicos, por exemplo.
Durante o desenvolvimento da metodologia, os pesquisadores utilizaram cerca de duas toneladas de cinzas de bagaço de cana-de-açúcar, obtidas nas usinas sucroalcooleiras da região de Ilha Solteira, no oeste paulista. A moagem foi feita na Unesp e o material enviado à Espanha para o desenvolvimento do novo cimento. Cada corpo-de-prova gasta cerca de 150 gramas de sólidos.
Os resultados, publicados no artigo da Materials, são promissores. Dependendo das proporções da mistura utilizada, os cientistas conseguiram uma resistência de 60 megapascais, enquanto os testes realizados com cimento convencional espanhol indicaram uma resistência de aproximadamente 50 megapascais. “Demonstramos, assim, que a resistência à compressão é similar à do cimento convencional europeu”, diz Tashida.
Menos emissões
Mas se a resistência é semelhante, o impacto ambiental para a produção do cimento ativado alcalinamente é significativamente menor. A produção do clínquer envolve a decomposição do carbonato de cálcio, também chamado calcário. Esse processo resulta na liberação de grandes quantidades de CO2 na atmosfera. As estimativas são de que a fabricação de cada tonelada de cimento Portland libera algo entre 800 quilos e uma tonelada de CO2. Comparativamente, a produção do novo cimento resulta em emissões que podem ser entre 20% e 80% menores, dependendo das proporções da mistura.
Apesar das vantagens, Tashima acredita que o novo material dificilmente conseguirá competir de forma direta com o mercado de cimento Portland. Segundo ele, a indústria do cimento é tão bem estabelecida que seu desempenho no mercado é usualmente adotado como um indicador de crescimento econômico.
“É bastante improvável que se consiga substituir totalmente o produto tradicional, mas acredito que o cimento ativado alcalinamente irá se prestar a preencher certos nichos do mercado, valendo-se de suas especificidades. É plausível que ele ganhe espaço em virtude de certas exigências ambientais, cada vez mais cobradas internacionalmente”, avalia Tashima. Em países como a Austrália isso já está acontecendo. Lá, algumas empresas utilizam materiais alternativos com maior resistência a ataques químicos para pavimentação.
O próximo passo para as pesquisas será testar a fabricação do produto com cinzas obtidas a partir da queima do bagaço em temperaturas controladas, no próprio laboratório. “Por enquanto, trazemos para o laboratório as cinzas do bagaço produzidas nas usinas. Mas se fizermos uma queima controlada, poderemos obter, provavelmente, um produto com características mais satisfatórias”, aposta Tashima.
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